O Supremo Tribunal Federal havia pautado o julgamento do Tema 914 de repercussão geral, que discute a constitucionalidade da Cide (Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico) incidente sobre as remessas ao exterior. A contribuição foi instituída pela Lei nº 10.168/2000 e posteriormente alterada pela Lei nº 10.332/2001, que ampliou seu campo de incidência.
Originalmente, a Cide incidia apenas sobre remessas destinadas ao pagamento por contratos que envolvessem transferência de tecnologia. Com a alteração promovida pela Lei nº 10.332/2001, o §2º do artigo 2º da Lei nº 10.168/2000 passou a prever a incidência da Cide também sobre valores remetidos ao exterior em razão da prestação de serviços técnicos e de assistência administrativa e semelhantes, independentemente da existência de transferência de tecnologia. O julgamento do STF avaliará se essa ampliação legislativa é compatível com os limites constitucionais da contribuição.
Essa discussão é particularmente relevante no contexto dos softwares disponibilizados sob a modalidade Software as a Service (SaaS). Isso porque, embora o §1-B do artigo 2º da Lei nº 10.168/2000, incluído pela Lei nº 11.452/2007, estabeleça que a Cide incide sobre a licença de uso de software apenas quando houver transferência de tecnologia, a Receita Federal entende que o SaaS não se caracteriza como simples licença de uso, mas sim como prestação de serviço técnico, o que atrairia a incidência da Cide com base na ampliação prevista no §2º.
Esse entendimento consta da Solução de Consulta Cosit nº 191/2017 (SC 191/2017), em que a Receita concluiu que os pagamentos por SaaS configurariam contraprestação por serviço técnico e, portanto, estariam sujeitos à Cide. Posteriormente, entretanto, a Receita editou a Solução de Consulta Cosit nº 107/2023 (SC 107/2023), que dispôs brevemente que a Cide não incide sobre a remuneração pela licença de uso de programa de computador, salvo quando houver a transferência de tecnologia.
Além de não ter revogado a SC 191/2017, a SC 107/2023 também dispôs que, para fins de PIS/Cofins-Importação, a remessa pela aquisição de licença de uso de softwares é a contraprestação pela importação de um serviço. Permanece, pois, a possibilidade de qualificação de SaaS como serviços técnicos.
Na prática, isso cria uma zona de insegurança jurídica. De um lado, a jurisprudência administrativa [1] e a própria Receita Federal reconhecem que, para caracterizar a transferência de tecnologia em contratos de software, é necessária a disponibilização do código-fonte ao contratante. A ausência desse elemento deveria afastar a incidência da Cide nas licenças de uso tradicionais.
Entretanto, no caso do SaaS, embora o código-fonte não seja transferido e o software apenas seja acessado remotamente, a Receita entende que a operação pode ser considerada serviços técnicos por englobar, por exemplo, suporte, manutenção, customização e esforço intelectual especializado.
Definir os critérios de incidência tributária é fundamental
Caso o STF entenda que a ampliação da base de incidência da Cide — para além da transferência de tecnologia — não é constitucional, a incerteza criada pela Receita sobre os pagamentos por SaaS deixaria de existir, uma vez que esses contratos normalmente não envolvem a entrega do código-fonte.
Por outro lado, se o STF confirmar a validade da ampliação, os SaaS continuarão sob o risco de serem qualificados pela Receita como serviços técnicos e sendo exigidos o recolhimento da Cide, como ocorreu no caso Mercedes em relação ao software MVA/PC [2].
A constitucionalidade (ou não) da ampliação da hipótese de incidência não é afetada pela qualificação desses softwares, mas é importante estar ciente das consequências laterais que os entendimentos do Supremo podem ter. Foi a partir do julgamento da ADI 5.659, por exemplo, que todo o entendimento da Receita para tributação de operações internacionais envolvendo softwares na SC 107/2023 foi baseado.
Em um cenário em que a economia digital cresce em ritmo acelerado, a definição clara dos critérios de incidência tributária sobre tecnologias como o SaaS é essencial. O julgamento do Tema 914, ainda que de natureza geral, tem potencial de estabelecer balizas mais precisas sobre o alcance da Cide, contribuindo para a previsibilidade na tributação dessas operações.
[1] Vide Ac. 3401-012.920, sessão de 18/4/2024.
[2] Ac. 3101-003.954, Sessão de 16/12/2024.
Fonte: https://www.conjur.com.br/2025-mai-15/consequencias-do-tema-914-do-stf-na-tributacao-de-saas/